quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O Contador de carneiros

Era um bom emprego. Contar carneiros não é difícil. É igual contar números, só que ao invés de números, carneiros. Falando assim parece mais complicado do que é, mas não é complicado. Contar carneiros é fácil. Difícil mesmo é conseguir ser demitido desse emprego. Eu consegui. Meus amigos riram quando eu contei que fui demitido. Eu ri com eles na hora, mas depois fiquei triste. Gostava muito do meu emprego. Sinto falta dele. Eu ajudava as pessoas. A maioria tinha problemas pra dormir, então me ligava pra eu ajudar elas. Eu ia na casa delas, sentava do lado da cama numa cadeira ou num banco, dependia da casa na verdade uma vez até sentei numa poltrona na casa de um senhor narigudo foi bem gostoso ela era vermelha. Bem que eu queria voltar lá mais algumas vezes mas agora não posso mais. Tudo começou porque fiz uma coisa que não devia. A maioria dos erros começam assim. Na verdade, acho que essa é a definição de um erro. Não sei, não sou filósofo. Sou um contador de carneiros. Pelo menos eu era, até cassarem minha licença. Por justa causa, é verdade. Fiz a única coisa que minha profissão não permite. Sabia que não devia ter aceitado aquele chamado. Meu telefone tocou no meio da madrugada. Tinha acabado de sair da casa de um homem nervoso, mas fiz ele dormir antes mesmo de chegar na casa do milhar. Na mesma noite, tinha feito uma criança cabeluda pegar no sono na casa da centena. Pensei em terminar o dia e ir pra casa. Ia desligar ali mesmo, não gosto de trabalhar com sonilóquios, a fala deles quando eles começam a entrar em sono profundo me desconcentra, e eu perco a contagem, aí preciso recomeçar e isso atrapalha todo o fluxo de sono deles e o trabalho não fica tão bom como eu gosto que fique. Mas ele parecia muito machucado pela insônia e eu tava me sentindo bem então eu aceitei. Toquei a campainha e um homem alto atendeu a porta. Era o mesmo do telefone, me indicou o quarto e pediu pra eu sentar. O quarto era pequeno mas tinha uma cama de madeira grande. A cadeira era de plástico. Comecei a contar assim que ele terminou de tomar o chá dele. Estava indo tudo bem e mais ou menos quando tinham trezentos e dezessete carneiros ele dormiu de vez. Contei mais um pouco, só pra garantir. Quando cheguei perto dos quatrocentos e sessenta e três carneiros as coisas começaram a ficar um pouco estranhas. Meu ritmo de contagem estava mais lento que o normal. Decidi aumentar o ritmo, e contei os próximos carneiros com mais energia. Mas em pouco tempo o ritmo caiu de novo. Não consegui entender o motivo. Com certeza ele não mentiu quando falou que era sonilóquio, o tempo todo ele emitia sons com a boca, mas não dava pra entender nenhum deles. A maioria das pessoas faz isso, só alguns poucos realmente falam frases compreensíveis, e esses barulhos não me atrapalham pra contar. Então não sei direito. Voltei a contar de onde parei, mas a partir de aí as coisas começaram a ficar nebulosas. Pouco a pouco fui encostando a cabeça na cadeira e meus olhos pesavam muito. Já não tinha mais vontade de continuar contando e a cadeira estava muito confortável. Parecia a poltrona vermelha. Na minha cabeça tudo que eu conseguia era imaginar era uma poltrona vermelha numa grande colina verde. Fiz a única coisa que eu não podia. Dormi.

Acordei com alguns fiscais no quarto. Já era de manhã, mas o homem alto continuava dormindo. Pediram para eu entregar meu crachá e sair do quarto em silêncio. Fiz o que me pediram. Estava muito triste. Triste por não ter feito um bom trabalho. Triste por ter perdido o emprego. Triste comigo mesmo. Isso foi há mais de 2 meses e eu não consigo parar de pensar nisso tudo. Eu ainda não sei o que aconteceu naquela noite. E os barulhos do homem também não saem da minha cabeça. Eram todos meio parecidos, mas só lembro bem dos últimos. Eu até tentei escrever, mas não faz sentido nenhum. Era alguma coisa tipo: "uonetauzendifórtitiuxipis uonetauzendifórtitrixips"

Nenhum comentário:

Postar um comentário