quarta-feira, 21 de outubro de 2015

História de peixe


Dois peixes se encontram num bar.

-Peixe, cê não acredita o que aconteceu comigo hoje.
-O quê?
-Tava cansado do trabalho, decidi sair pra refrescar a guelra. Fui dar uma volta lá perto dos corais, sabe?
-Sei.
-Correnteza fraca, superfície bonita, tudo tranquilo. De repente, sinto uma agitação forte na água, olho pra cima e vejo uma sombra gigante boiando encima de mim. Achei que fosse um tubarão tigre, então, óbvio, nadei na direção dele pra enfrentar.
-Sim, eu teria feito o mesmo nessa situação.
-Então. Conforme fui chegando perto a sombra ia ficando cada vez maior, cheguei até a pensar que era uma baleia azul ou uma ilha. Quando percebi, era um navio de guerra americano, devia ter umas 1400, 1600 nadadeiras de comprimento.
-1600 nadadeiras?!
-To te falando, era muito grande, segunda vez só que eu vejo um desse tamanho. Mas fica pior. Enquanto eu tava parado olhando o navio, sinto um puxão forte na minha nadadeira, até ficou marca, te mostro depois. Olho pra baixo, e percebo que fui pego por uma rede de pesca.
-Não! E aí, o que você fez?
-Foi difícil, a rede era de aço reforçado e os buracos eram pequenos demais pra eu conseguir fugir por dentro deles. Desesperado, eu comecei a morder uma quina da rede perto da amarra, onde era mais fraca, mas mesmo assim, ela parecia indestrutível. A rede começou a puxar com mais força, eu tava quase na superfície, já dava até pra sentir o calor do sol batendo na minha barbatana! Foi aí então que eu, com a cauda já fora da água, juntei todas minhas forças e mordi a rede uma última vez. Ela finalmente cedeu, eu fugi e consegui mais alguns outros peixes.
-Não acredito! Foi por pouco! Você sabe quem eles são? Eles devem ter ficado muito aliviados.
-Ficaram, não paravam de me agradecer. Falaram que iam enviar presente e me visitar, mas falei que não precisava. Eles são outra região, se não pedia pra eles contarem a história pra você também.
-Pô, que escama, queria conhecer eles.
-É.

-Mas e você, o que tem pra me contar de hoje?
-Peixe, cê não sabe quem tava dando mole pra mim hoje de manhã...

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Noites de verão na Corséga

Eram 6:27 da tarde e ela estava com seu namorado no cinema, assistindo um filme sobre a história de um produtor de eventos esportivos num clube de golf na Córsega recém divorciado e uma jovem executiva que ama Sudoku e está em dúvida sobre suas prioridades na vida frente às novas mudanças de liderança dentro da empresa, que se conhecem por coincidência numa festa de ano novo na praia e que voltam a se encontrar meses depois em uma feira literária, onde ela descobre que ele é, secretamente, o autor de um de seus livros preferidos de infância e tentam conciliar essa nova paixão repentina com suas respectivas rotinas de trabalho. Ficou com vontade de ir no banheiro (ela tinha uma bexiga relativamente pequena comparada a média mundial, segundo recente pesquisa), e pediu passagem para o casal de idosos que estavam sentados ao seu lado, nos primeiros dois assentos ao lado do corredor.  A senhora Vilma abriu um sorriso, e rapidamente encolheu os pés, abrindo espaço suficiente para que uma jovem garota de dezessete anos e estatura mediana pudesse passar sem grandes desconfortos para ambas partes. Já o senhor Venceslau, num gesto rude e particularmente contraditório a expectativa geral da sociedade,  estendeu ambas as pernas e apoiou-as sobre as cadeiras da frente, formando assim uma cancela pela qual a jovem não conseguiria passar tranquilamente. A garota, em visivel estado de confusão e perplexidade, interrogou o senhor com um rápido movimento na sobrancelha, que, apesar de praticamente invisível na penumbra do cinema, foi respondido com a timbrosa porém baixa (visto que eles estavam no cinema) voz do senhor Venceslau: "Aqui não! Não vai passar e pronto." Enquanto isso, a senhora Vilma e o namorado da jovem permaneciam vidrados no filme, ignorando toda a excêntrica situação que decorria a sua volta, compenetrados pela cena em que a executiva deita na cama do hotel estrelas e decide ligar para sua melhor amiga e contar sobre o encontro com o produtor de eventos, que para a surpresa dela, está ouvindo tudo com um copo atrás da porta do quarto. O empasse entre o senhor Venceslau e a jovem esquenta ainda mais quando os outros expectadores do cinema começam a reclamar da pessoa em pé e do barulho decorrente da situação. "Silêncio" "Eu to tentando assistir" "Shhhhh" eram as frases mais ditas nos outros assentos do cinema. A garota então decidiu pedir mais uma vez, tomou forças dentro de si, olhou o senhor Venceslau novamente nos olhos e disse: "Senhor Venceslau, se o senhor não me deixar passar eu vou descascar uma laranja e usar a casca como coçador de costas por um mês". O senhor Venceslau então descruzou os braços e com uma voz propositalmente mais suave disse: "Eu adoro laranja. Eu e a Vilma sempre comemos lá em casa, não é Vilma?" A senhora Vilma então aproximou-se com o corpo e encostou a cabeça nos ombros do senhor Venceslau: "Sim. Eu gosto bastante do contraste entre doce e azedo". O senhor Venceslau então abriu um sorriso e disse: "Pode passar mocinha" e levantou a perna de uma maneira bastante acrobática, quase circense.

Enquanto ela subia rapidamente pelos degraus do corredor central do cinema, a tela exibia a cena em que o produtor de eventos está jovialmente ensinando a executiva a jogar golf, seguida instantaneamente pela cena em que ambos estão dirigindo o carrinho de golf desgovernadamente por uma área de grama alta enquanto batem em galhos de árvore e riem alto.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Expectativas

Uma mulher foi comprar o jornal na banca:

-O jornal por favor.
-São quatro e cinquenta.
-Só tenho cinco.
-O troco pode ser em bala?
-Não.
-O troco pode ser em moedas de cinco?
-Não.
-O troco pode ser uma performance de malabarismo?
-Sim.

O jornaleiro então tirou três bolas de tênis do bolso e executou lançamentos simples na técnica da cascata, na qual duas bolas são suspensas enquanto a terceira alterna entre mãos. Terminou a apresentação depois de doze jogadas.

-Aqui sua sacolinha.
-Obrigada

sábado, 21 de março de 2015

Ajustiça

Há quem diga que o mundo é injusto. O que pode ser metade verdade, dependendo de como você o define. O mundo é o produto final da relação entre natureza e civilização; apenas a segunda parte dele é julgável. A civilização, a maneira como todos seres humanos se relacionam e se relacionaram ao longo da história, pode ser pesada na balança da justiça. Ainda que esse emaranhado de ações, pensamentos, direitos, ideias e poderes sejam infinitamente complexos, são todos guiados pela moral e razão e, portanto, podem ser justos ou injustos. A natureza não.A natureza determina quais pessoas vão nascer com certas características, quais populações serão afetadas por tais doenças, quais países vão sofrer a certos desastres naturais. Ela dá a alguns qualidades genéticas de um herói e a outros, deformidades terríveis. Ela causa câncer em crianças e mantém homens de índole questionável vivos por anos. Ela joga raios em banhistas. Ela mata bebês no parto. Tudo de forma aleatória, tudo de forma desconexa. Como é possível atribuir qualquer senso de justiça a tantas inconsistências morais?

A natureza é ajusta.